A NOITE DA ESBOSLÁVIA
Autor: Arnoldo Pimentel
Ao meu irmão Cláudio Rangel
Eu estava
devendo esse conto a você meu irmão. Aquela foi uma das noite mais difíceis que
tive, sei que jamais esquecerei o que passamos ali, os socos, os baldes d’água
na cara, os bichos nas costas, os choques na língua e no pau, os enterros até o
pescoço e toda dor que passamos. Um beijo cara, eu te amo meu irmão.
O corredor era
largo, de um lado ficavam as salas, do outro a vidraça. Ela percorreu o
corredor até a saída que dava para o pátio, que estava vazio. No pátio sentou
num dos bancos, retirou um papel em branco da bolsa e escreveu alguma coisa,
ouviu passos em sua direção, dobrou o papel, colocou em um envelope de carta e
guardou na bolsa.
- O ônibus está lá fora, já é hora de ir, não adianta
mais esperar, não vem ninguém. – Disse uma amiga que chegou ao seu lado.
- O que você colocou na bolsa? – Perguntou a amiga.
- Umas palavras, durante a viagem deixarei em algum
lugar.
- Não tem destinatário?
- Eu mesma.
Ela levantou, cruzou o pátio, saiu pelo portão e entrou
no ônibus.
O carro
saiu da estrada e parou. A estrada era deserta, vez ou outra passava um
caminhão ou um ônibus para o meio oeste.
- Vamos descansar um pouco e comer alguma coisa filho –
Disse o homem que dirigia o carro.
- Pai, eu posso andar um pouco? – Perguntou o filho
- Não vá longe, só enquanto preparo os lanches.
O filho fez sinal com a cabeça e caminhou ao redor,
voltou alguns minutos depois com um envelope nas mãos.
- O que é isso filho?
- Não sei, parece uma carta, achei embaixo de uma pedra,
perto de uma árvore.
O pai pegou o envelope e abriu.
- Está muito gasto – Disse ao filho.
- O que está escrito pai?
- Apenas algumas palavras que vou ler.
“A lua parece tão longe
Como faço para ir até lá?
Deus, meu Deus, onde está você?”
- Não tem mais nada escrito? Perguntou o menino.
- Não, não tem. Entre no carro e vamos embora. – Disse o
pai.
Quando soube dos tiros em Lennon, era prisioneiro,
prisioneiro do silêncio e nem sabia como colher azeitona das oliveiras, não
sabia o que era ser livre, não sabia da liberdade que existia do outro lado do
muro e que podia ver da guarita, onde ficava vigiando o mundo paralelo, mundo
verdadeiro, pintado como submundo. Era
obrigado a dar dez voltas no campo de futebol embaixo do sol do meio dia,
vestindo a fantasia do monstro que destrói vidas, a besta do Apocalypse, mas
tinha sonhos que cantava no violão todas as noites que podia, na varanda que
ficava escondida, lá nos fundos, de frente pra guarda 2.
Naquela noite, solitária como as outras naquele
"recanto", estavam uns dez companheiros, todos muito jovens, reunidos
do lado de fora do alojamento, na varanda que ficava escondida, nos fundos,
todas as noites que podiam ficavam ali, numa roda de violão, a tocar, cantar e
jogar conversa fora.
- Olá meu irmão, pensamos que não fosse vir tocar um
violão.
- Eu queria mesmo era estar andando de skate em Paranoid
Park, sentido o vazio no meu rosto.
- Nosso paraíso é agora cara, é aqui.
- Aqui é nosso inferno.
- Passei a manhã dando voltas no campo, debaixo de 40
graus, com uniforme de combate. Aquele tenente filho da puta.
- Você parecia o monstro do Apocalypse.
- Nós somos o Apocalypse cara, pode acreditar.
- Senta ai logo, cara.
- Deixa eu dar um pega ai meu irmão.
- Não vá fumar tudo.
- Eles contam que os comunistas entraram num alojamento e
mataram muitos.
- Mas não contam que nós, nós porque não temos direito de
escolha, também matamos comunistas.
- E Deus onde fica nisso?
- Deus fica sempre em segundo plano.
- Como assim?
- Se você tiver que atirar em um inimigo para matar você
vai pensar em Deus? Você pensa em Deus quando recebe seu dinheiro e vai trepar
com alguma Maria batalhão? Não, não pensamos em Deus quando nos sentimos
felizes, quando ambicionamos alguma coisa de outro, quando pecamos, você acha
que os pilotos que jogaram bombas em Hiroshima e Nagasaki pensaram em Deus
naquele momento?
- Só lembramos de Deus quando estamos sofrendo, sem
esperança, quando precisamos Dele, essa é a verdade.
- É melhor dormirmos depois da hora do silêncio.
- Lembram o que houve semana passada? Quem estava aqui?
- Eu estava, éramos uns dez como hoje e estávamos
conversando, quando por volta de duas da madrugada, ele subiu aqui no
alojamento.
- Disse que não conseguia dormir com o barulho, mandou
todos nós descermos para o pátio, depois mandou todos tirarem a roupa, chovia
uma chuva fina e fazia um frio da porra.
- Ficamos todos nus, um do lado do outro, de frente pra
ele, por quase uma hora.
- Ele estava embaixo da cobertura, sentado com sua
garrafa de café quente e seus biscoitos.
- Em cima da mesa tinha um cassetete que ele levantou
dizendo: "Se algum de vocês ficar de pau duro eu vou dar uma porrada bem
dada."
- Ficamos ali até ele nos mandar subir e ir para sua
ronda.
- Eu não vejo a hora de acabar meu tempo, ir embora daqui
meu irmão, não vejo pessoas como inimigos, que eu devo abater como um animal.
- Eu também mano, não nasci para isso, não pertenço a
esse mundo, não me identifico com armas meu irmão.
- Isso aqui é uma experiência de vida para nós.
- Desde o momento que você é obrigado, não é experiência
de vida e sim cárcere privado, escravidão.
- Mas nós recebemos para estarmos aqui.
- Dinheiro é vida pra você? Compra sua liberdade, sua
alma, sua dignidade?
- Que tal uma música? Estou prestando atenção nessa
filosofia toda, a vida é foda irmão.
- Vou cantar uma do Belchior, "Velha Roupa
Colorida"
Ficaram ali ouvindo a canção, uns dez companheiros, nem
todos eram amigos, mas estavam juntos ali. Enquanto a música era cantada, um
dos presentes escrevia no caderno que sempre estava com ele nas horas vagas.
- O que escreve ai irmão?
- Estou escrevendo uns poemas.
- Leia ai pra gente, faço o fundo musical aqui.
-Vou ler dois.
- Enquanto você lê os poemas irmão, farei um fundo
musical com "Imagine" em homenagem ao Lennon que foi morto ontem a
tiros. Nós dois não acreditamos na vida bélica, no militarismo, alguns aqui
pensam como nós, outros não, mas sei que nunca esqueceremos os que convivem
aqui.
- Vou ler.
"A SOMBRA, A CANTINA E O VULCÃO
Estou em coma
No campo de obstáculos
Tem um planeta chamado marte
Muitas voltas de suor, um disco de rock quebrado
E uma cadeia para execução dos condenados
Quantas noites eu morri?
Há quantas noites estou morto?
Que sou eu?
Quem somos nós?
Lá fora eu tinha alguns minutos no ônibus
Lá fora, pelo menos eu tinha...
Óculos de plásticos, um violão, uma bateria e...
Alguns minutos no ônibus
BOMBAS
Onde estão as casas
Que as bombas levaram?
Onde nasceram as bombas
Que os bombardeiros soltaram?
Os gritos das crianças chamando
Por seus pais com os olhos embaçados
Ainda vagam pelas luas
E os pedidos de ajuda
Ainda ecoam sem serem
Ouvidos"
- Silêncio, tem alguém subindo.
- O que é isso.
- Gás.
- Calma gente,
deve ser exercício.
- Máscaras, onde estão as máscaras?
- Isso é real seu animal.
- Todos parados.
- Meu rosto está ardendo.
- Não nos matem.
- Todos para o caminhão em fila indiana.
- Por favor tenente.
- Vamos seus animais.
- Depressa seus merdas.
- Vocês vão conhecer a noite da esboslávia.
- O inferno verde vai cair na cabeça de vocês.
- Escolha um.
- Você ai, comigo, você será o coveiro..
- Andem, todos para o caminhão.
- Não nos matem, senhor.
- Vamos todos morrer.
- Mãe, socorro, mãe, mãe.
Que homenagem linda ao seu irmão. Que história, dá um nó na garganta... Quantas situações difíceis.
ResponderExcluirQuanto tampo não passo por aqui, revendo os amigos e deixando um oi bem carinhosos.
Abraços para ti Arnoldo. Lindos contos, poemas e textos.
Muito bom!
ResponderExcluirCriativo.
Parabéns!
Gostei dos companheiros lendo poesia
ResponderExcluire tocando Lennon naquela hora.
Gosto destes lances imprevisíveis.
abraço
Olá amigo Arnoldo, vim ler seus contos um pouquinho. Muito bom! Parabéns e um ótimo fim de tarde. Beijos
ResponderExcluirComo um soco no estômago, deu saudade dos tempos de luta!
ResponderExcluirAbraços,
Araceli Sobreira
venha nos visitar também:
www.pedradosertao.blogspot.com.br
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirQuanto tempo que estou sem poder visitar vocês no blogger.
ResponderExcluirAinda estou por aqui.
Belos poemas.
beijos!!