Edicões Gambiarra Profana/Folha Cultural Pataxó




"Minha Poesia não usa vestes para se camuflar, é livre e nua" (Arnoldo Pimentel)

"Censurar ninguém se atreverá, meu canto já nasceu livre" (Sérgio Salles-Oigers)

"Gambiarra Profana, poesia sem propriedade privada, livre como a vida, leve como pedra em passeata" (Fabiano Soares da Silva)

"Se eu matar todos os meus demônios, os anjos podem morrer também" (Tenneessee Williams)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

DEUS PROVERÁ


            
Ainda era bem cedo quando o café estava sendo passado no coador e o aroma viajava pelos cômodos da casa, casa simples, uma casa muito simples. As paredes que há muito não eram pintadas e com algumas marcas da chuva, tinham alguns retratos da família como decoração, retratos amarelados pelo tempo. O telhado também tinha seus problemas, um tanto envelhecido com algumas telhas rachadas e goteiras que enchiam as panelas e bacias quando a chuva que ficava algum tempo sem visitar aquele lado da vida dava o ar da graça. O menino sentou-se a mesa e esperou a mãe terminar de coar o café.  A mãe serviu o café na caneca de plástico verde do menino e na sua caneca de plástico azul e deixou o bule verde sobre a mesa de madeira forrada com uma toalha de pano limpa e desgastada. Para comer tinha apenas o cará e mais nada, nem pão, nem manteiga, nem geléia de framboesa, geléia que nunca esteve naquela mesa.

- Vamos orar – disse a mãe
O menino abaixou a cabeça, juntou as mãos, fechou os olhos e orou em silêncio, a mãe também orou em silêncio. Sobre a cômoda da sala estava a Bíblia aberta no Livro de Salmos, capítulo 23 – “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”

= Mãe porque não tem comida? Minha barriga ronca sempre
- Somos pobres, vivemos da terra e na seca quase não tem o que comer.
= Mas nem água tem, a moringa está quase vazia
- Depois que a gente voltar da Igreja vou buscar água, agora pegue a Bíblia para irmos a Igreja
O menino foi até a cômoda e pegou a Bíblia, antes de fechá-la, leu o versículo que estava a sua frente
“O Senhor é meu pastor, nada me faltará”
Ficou sem entender o que dizia, pois na sua e em outras casas de perto não tinha nada.
Enfim fechou-a e foi em direção a mãe que já estava na porta. Os dois saíram deixando a porta encostada, pois a tramela só fechava a porta por dentro e ganharam a estrada para a Igreja que ficava na vila. O sol já era alto, quente e a estrada empoeirada. O vento levantava a poeira que quase lhes cegava a visão, com uma das mãos a mãe segurava o menino e a outra mantinha fechada, o menino vendo a mão da mãe fechada perguntou:
= O que tem mão?
- Nada que lhe interessa
= Mas quero saber
- Menino curioso, são umas moedas para a oferta da Igreja
= Mas e o pão para amanhã?
- Come cará
= Estou enjoado de cará
- Amanhã Deus proverá
O menino calou-se e foram andando, seriam uns quarenta minutos de caminhada sob o sol quente até a Igreja.
Em certa altura passou um carro novo levantando poeira
= Mãe
- Fala menino
= Por que não pararam para nos levar a Igreja?
- Talvez não tenha lugar no carro
= Tem sim, só tem o homem, a mulher e o menininho
-  Você vê demais
= Mãe, por que algumas pessoas só falam com a gente na Igreja? Será porque lá são obrigadas? Porque na rua fingem que não nos vê
A mãe ficou em silêncio, ela já conhecia o mundo e seu filho ainda não

 Dentro do carro que passou e não parou para eles, não se importando nem mesmo com a poeira que levantava, um menino olhava pelo vidro e como não conhecia o mundo e suas diferenças, acenou um adeus. No vidro traseiro do carro um adesivo com a frase:
“Deus deu de presente para mim”
O menino na estrada leu a frase, olhou para a mãe e perguntou:
= Mãe se você tivesse outros filhos, trataria todos iguais?
- Claro menino, com todo amor
= Então porque Deus dá presente para uns e para outros nem comida?
= Será que não merecemos?
= O que fizemos para merecer esse castigo?

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

ÀS VEZES CHOVE LÁ FORA



ÀS VEZES CHOVE LÁ FORA


Ela parou em frente a livraria e entrou, sabia que o encontraria ali, mesmo tendo passado dois anos que não se viam, procurou com o olhar pelas mesas e não o viu, tirou o celular da bolsa e ligou, um dois toques e ele atendeu.

- Alô
= Oi, estou na livraria, você está onde?
- Oi, estou chegando ai, uns 05 minutos, sente-se e espere
= Ok, disse ela, desligou o celular, escolheu um lugar e sentou-se

Passaram-se alguns minutos, ele chegou ,  beijaram-se no rosto e ele sentou-se ao seu lado

- Como você está? Perguntou ele
= Estou bem, senti saudades suas e resolvi vir ver pessoalmente com está, sei que sempre gostou de ler um pouco aqui aos sábados pela manhã
- Você não esqueceu meus hábitos
= Vivemos três anos juntos, não poderia esquecer, principalmente os sábados que me deixava tão só pelas manhãs e vinha ler – disse ela sorrindo
- Mas você também gostava de ficar só algumas horas
= Sim, eu ainda gosto, o quem tem lido?
- Algumas coisas, sábado passado li “Rumo ao Farol” da Virginia Wolf mais uma vez
= Eu conheço esse livro, você não o acha um tanto solitário?
- É justamente por isso que o leio vez ou outra
= A Sra Ramsay  parece ser a pessoa mais solitária da história
- “Nunca alguém pareceu tão triste. Amarga e escura, a meio caminho nas trevas, sob o feixe de luz que fugia do sol para encerrar-se nas profundezas, talvez uma lágrima se tenha formado; e uma lágrima caiu; as águas agitaram-se de um lado para o outro e receberam-na, depois acalmaram-se. Nunca ninguém pareceu tão triste.” Esse é o trecho que mais amo no livro.
- Ela e a ilha onde fica o farol, metáfora da felicidade que ela via de longe e nunca tocou
= E onde está seu farol?
- Perdido no passado
= Não fui seu farol?
- Nunca fomos felizes, não lhe dei chance de ser meu farol, sempre fiquei muito distante
= Eu também penso que talvez eu nunca tenha passado de uma ilusão
- Ilusões existem, somem e voltam como nuvens, sempre estarão por perto e tão longe
= É, talvez seja isso
- Assisti “Setembro” do Woody Allen ontem, já assistiu?
= Não
- As pessoas podem estar juntas e muito distantes umas das outras, mesmo numa casa de praia um fim de semana inteiro, com sonhos que as misturam e as separam ao mesmo tempo
= Você está pra baixo
- Talvez eu esteja apenas esperando as horas passarem, enquanto caminho pelo bosque para atravessar a ponte
= Eu ainda procuro meu caminho
- Eu a vi semana passada numa galeria de artes
= Quem?
- Ela, que seria meu farol, nos amávamos tanto
=  Nunca me falou tudo sobre ela
- Sempre fui discreto
= Quanto tempo não a via?
- Uns 25 anos, ela ainda tem o mesmo olhar
= Se falaram?
- Ficamos apenas nos olhando entre os quadros
= Não se falaram?
- Apenas nos olhamos
= Nem uma palavra?
- Está chovendo, a praia fica linda olhando daqui, quando chove pela manhã