Edicões Gambiarra Profana/Folha Cultural Pataxó




"Minha Poesia não usa vestes para se camuflar, é livre e nua" (Arnoldo Pimentel)

"Censurar ninguém se atreverá, meu canto já nasceu livre" (Sérgio Salles-Oigers)

"Gambiarra Profana, poesia sem propriedade privada, livre como a vida, leve como pedra em passeata" (Fabiano Soares da Silva)

"Se eu matar todos os meus demônios, os anjos podem morrer também" (Tenneessee Williams)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

TEMPO QUE SE FOI (CONTO)


TEMPO QUE SE FOI

O dia amanhecia com o sol tocando as folhas verdes das árvores, acariciando as flores que enfeitavam a entrada da varanda. Folhas e flores dançavam levemente levadas pelo vento que chegava junto com o sol, alegrando a manhã desse novo dia.
Chegou como se fosse do nada, abriu a porteira de madeira e foi entrando pelo quintal sem prestar atenção nas folhas e nem nas flores que dançavam levadas pelo vento. Caminhou até o tanque e serviu-se de água fresca e nem mesmo percebeu o olhar do menino que acompanhava pela janela os seus passos. Tirou o chapéu e bateu na roupa com força para tirar a poeira que acumulou durante a caminhada. O menino saiu da janela, atravessou a sala, abriu a porta e foi caminhando pela varanda ao encontro do estranho, desceu os degraus e foi passo a passo até o tanque onde o estranho estava parado olhando a simples casa. Olharam-se por alguns minutos sem falar nada, até que o estranho quebrou o silêncio.

- Você mora aqui?
+ Sim – respondeu o menino com voz tímida e baixa
- Não vai me convidar para sentar nos degraus da varanda pelo menos?

O menino acenou que sim e caminharam para a varanda em silêncio e sentaram-se nos degraus.
+ De onde você vem? – perguntou o menino
- De terras de meu Deus, onde andei fugindo de mim mesmo
+ Conheço seu rosto de algum lugar e não sei de onde
- Talvez de algum retrato antigo ou algum sonho esquecido

Os dois ficaram em silêncio observando as aves que cortavam o céu, cortavam o tempo voando de encontro a novos, antigos lugares, paisagens remotas, ou cortando os horizontes sem destino, apenas cortando o silêncio com suas asas.

O estranho fitou a cerca por um momento e disse:
- Já vivi aqui
+ Onde? Aqui?
- Sim, há anos atrás
+ E por que foi embora?
- Talvez por não acreditar na vida
+ Na sua vida?
- Em tudo
+ E o que fez esses anos todos?
- Andei por ai, sentindo o vento da solidão
+ Tem filhos?
- Sim, mas não me conhece
+ Mas talvez ele possa sentir você, sentir sua falta
- Ninguém sente falta daquilo que não conhece
+ Talvez sinta e você nem mesmo sabe o quanto

O estranho ficou um pouco distante, pensativo
+ Preciso regar o jardim
- Tem alguém além de você em casa?
+ Minha avó, ela está doente, não tem muitos dias, diz que logo partirá
- E sua mãe?
+ Partiu pro céu
O estranho calou-se, ficou quieto, entristecido e de seus olhos nasceram pequenas e sentidas lágrimas e por fim falou:
- Vamos regar o jardim

Os dois ficaram ali um bom tempo regando o jardim, depois ficaram caminhando pelo quintal, passos leves e lentos, sentindo o calor do sol em seus rostos e de repente o estranho falou:
- Preciso ir
+ Pra onde vai?
- Sem rumo, seguirei meu destino
+ Fique
- Acho melhor não
+ Por que não?
- Tenho lembranças do tempo que não vivi, que perdi
+ Poderá recuperar
- Não há o que recuperar
+ Não me esqueça
- Nunca te esquecerei, adeus

E assim o estranho foi caminhando em direção a porteira, colocou o chapéu, abriu a porteira devagar e saiu do quintal seguindo rumo ao horizonte sem fim, rumo a sua própria solidão. O menino ficou olhando um tempo, sentindo um aperto no coração, virou as costas e entrou na casa para ver a avó, que observou por alguns momentos, pela janela do quarto e voltou a deitar-se. O menino entrou no quarto, chegou perto da avó e falou:
+ Conheço o estranho de algum lugar e acho que sempre senti sua falta
= Olhe o retrato na cômoda do seu quarto, aquele que nunca prestou atenção
O menino saiu e foi ao seu quarto, olhou o retrato e voltou
= Quem são no retrato?
+ Minha mãe, o estranho e eu criança no colo de minha mãe
= E agora sabe quem ele é?
+ Sim
= Quer ir atrás dele?
+ Não
= Ficará sozinho, não tenho muitos dias de vida
+ Mas tentarei ser assim, sozinho
O menino saiu do quarto da avó, atravessou a sala e debruçou-se na janela e ali ficou olhando a distância que o separou do futuro e do estranho.

12 comentários:

  1. Oi meu amigo,
    Bonito conto, gostoso de ler, parabéns!
    Bjos,
    *Simone*

    ResponderExcluir
  2. Lindo demais esse conto!
    Adorei!
    Como é bom ler um texto repleto de sentimentos e emoção como este seu, Arnoldo.
    Parabéns,você escreve com o coração.

    Um grande abraço.

    Marion

    ResponderExcluir
  3. " ali ficou olhado a distâcia que o separou do futuro e do estraho"
    O sofrimeto fez com que o meio amadurecesse rápido demais e sua alma adulta preferiu que fosse assim...
    Paraés...lindíssimo.
    jus!

    ResponderExcluir
  4. eu ocnssegui com toda riqueza de detalhes, me sentir no ambiente campestre que descrevestes.
    E o que prezo na leitura é essa capacidade de nos levar a pureza e a solidão do campo. Que de passagem é meu lugar preferido.

    '' A pior parte é perceber sair da porteira aquele caixeiro viajante e solitário, que sabiamos poder o dar todo amor do mundo.. As pessoas necessitam partir, e nem sempre isso é bom.''

    Obrigada pelo carinho viu ?
    Abraços

    ResponderExcluir
  5. Num momento único o estranho se fez presente, dentro da distância não ameaçadora. a proximidade cotidiana talvez o tornasse mais distante ainda...ou não...seres humanos são caixas de surpresas!

    ResponderExcluir
  6. Olá caro poeta e amigo,

    um conto bonito numa temática sólida, que trata de amizade entre outros valores importantes. Um história contada na medida certa... Um abraço com carinho.

    ResponderExcluir
  7. Arnoldo, esse conto mexeu comigo, sabia?
    Aposto que esse menino ficou a chorar por dentro!
    Pode ser apenas um conto.
    Pode também ser uma história muito real, e muito bem contada!

    Estava sentindo a tua falta nos meus cantinhos.
    Volta mais vezes, a casa também é tua.
    Beijo.
    Obrigada pelo carinho.

    ResponderExcluir
  8. Ola, lindo esse conto, cheio de incertezas, sentimentos esquecidos e surpresa.
    Estou te seguindo.
    obrigada por visitar meu blog e comentar, fico feliz que tenha gostado.
    abraços.

    ResponderExcluir
  9. Nossa !
    Aqui também é tudo Muito Lindo !!!


    Bjo...

    ResponderExcluir
  10. Fiquei encantada com este conto, sem dar nome a ninguem você conseguiu ter um começo, um meio e um fim emocionante.
    Lindo mesmo.

    ResponderExcluir
  11. LINDA SUA ESCOLHA, É UMA LEITURA GOSTOSA, É MUITO BOM LER CONTOS ASSIM, NOS LEVA A INFÂNCIA, NOS FAZ ENTRAR E VIVER A ESTÓRIA. GOSTO MUITO DESTE TIPO DE LEITURA. OBRIGADO PELO PRIVILÉGIO DESTE PEQUENO MOMENTO. UM BEIJO COM CARINHO.

    ResponderExcluir