Ainda era bem cedo quando o café estava sendo passado no coador e o aroma viajava pelos cômodos da casa, casa simples, uma casa muito simples. As paredes que há muito não eram pintadas e com algumas marcas da chuva, tinham alguns retratos da família como decoração, retratos amarelados pelo tempo. O telhado também tinha seus problemas, um tanto envelhecido com algumas telhas rachadas e goteiras que enchiam as panelas e bacias quando a chuva que ficava algum tempo sem visitar aquele lado da vida dava o ar da graça. O menino sentou-se a mesa e esperou a mãe terminar de coar o café. A mãe serviu o café na caneca de plástico verde do menino e na sua caneca de plástico azul e deixou o bule verde sobre a mesa de madeira forrada com uma toalha de pano limpa e desgastada. Para comer tinha apenas o cará e mais nada, nem pão, nem manteiga, nem geléia de framboesa, geléia que nunca esteve naquela mesa.
- Vamos orar – disse a mãe
O menino abaixou a cabeça, juntou as mãos, fechou os olhos e orou em silêncio, a mãe também orou em silêncio. Sobre a cômoda da sala estava a Bíblia aberta no Livro de Salmos, capítulo 23 – “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”
= Mãe porque não tem comida? Minha barriga ronca sempre
- Somos pobres, vivemos da terra e na seca quase não tem o que comer.
= Mas nem água tem, a moringa está quase vazia
- Depois que a gente voltar da Igreja vou buscar água, agora pegue a Bíblia para irmos a Igreja
O menino foi até a cômoda e pegou a Bíblia, antes de fechá-la, leu o versículo que estava a sua frente
“O Senhor é meu pastor, nada me faltará”
Ficou sem entender o que dizia, pois na sua e em outras casas de perto não tinha nada.
Enfim fechou-a e foi em direção a mãe que já estava na porta. Os dois saíram deixando a porta encostada, pois a tramela só fechava a porta por dentro e ganharam a estrada para a Igreja que ficava na vila. O sol já era alto, quente e a estrada empoeirada. O vento levantava a poeira que quase lhes cegava a visão, com uma das mãos a mãe segurava o menino e a outra mantinha fechada, o menino vendo a mão da mãe fechada perguntou:
= O que tem mão?
- Nada que lhe interessa
= Mas quero saber
- Menino curioso, são umas moedas para a oferta da Igreja
= Mas e o pão para amanhã?
- Come cará
= Estou enjoado de cará
- Amanhã Deus proverá
O menino calou-se e foram andando, seriam uns quarenta minutos de caminhada sob o sol quente até a Igreja.
Em certa altura passou um carro novo levantando poeira
= Mãe
- Fala menino
= Por que não pararam para nos levar a Igreja?
- Talvez não tenha lugar no carro
= Tem sim, só tem o homem, a mulher e o menininho
- Você vê demais
= Mãe, por que algumas pessoas só falam com a gente na Igreja? Será porque lá são obrigadas? Porque na rua fingem que não nos vê
A mãe ficou em silêncio, ela já conhecia o mundo e seu filho ainda não
Dentro do carro que passou e não parou para eles, não se importando nem mesmo com a poeira que levantava, um menino olhava pelo vidro e como não conhecia o mundo e suas diferenças, acenou um adeus. No vidro traseiro do carro um adesivo com a frase:
“Deus deu de presente para mim”
O menino na estrada leu a frase, olhou para a mãe e perguntou:
= Mãe se você tivesse outros filhos, trataria todos iguais?
- Claro menino, com todo amor
= Então porque Deus dá presente para uns e para outros nem comida?
= Será que não merecemos?
= O que fizemos para merecer esse castigo?